13 de fevereiro de 2008

Aqueles olhos...

... diziam mais do que ela imaginava!
Todos os dias ela passava por aquela mesma rua. Aquelas casas, aquelas pessoas lhe eram familiares, embora com nenhuma delas houvesse em toda sua vida trocado palavras outras se não "Bom dia!", "Boa tarde!" ou "Boa noite!". Todas aquelas pessoas faziam parte de seu itinerário monótono e cansativo, mas nenhuma delas fazia parte de sua vida, exceto uma.
Todos os dias aqueles olhos a perseguiam. Não que eles estivessem voltados para ela explicitamente, mas pela persiana, eles o fitavam. Ás vezes de esguelha, ela olhava para a janela daquele sobrado desbotado e maltratado, certificando-se de que ainda era vigiada, e com surpresa alguma confirmava aquele olhar sobre ela.
Desde que fora novamente ocupado, aquele sobrado vinha lhe incomodando. Seja pelo fato de não contar mais com a presença daquela simpática senhora que lhe oferecia bolinhos todos os dias - e que ela também simpaticamente os recusava, seja por aquele olhar constantemente pousado sobre ela, aquele imóvel vinha lhe tirando o sono.
No começo, ela teve medo. Pensou em chamar a polícia, afinal aqueles olhos não a deixavam em paz. Tinha consciência de que sua rotina facilitava aquela religiosa observação. Todos os dias era obrigada a passar por ali, mas quem se sentiria á vontade ao ser observado piamente, de maneira tão sorrateira? Desfez-se da idéia de fazer uma queixa após refletir sobre o que diria na delegacia: "Olha, vim aqui fazer uma queixa contra um vizinho que não pára de me olhar!". Não. Definitivamente, patético. Achou melhor redobrar o cuidado.
Ela procurava antecipar ou atrasar a sua saída em alguns poucos minutos, poucos mesmo, pois não poderia mexer consideravelmente em sua cronômetrada rotina senão isso lhe renderia atrasos no trabalho e não seria bom. Fato é que eles continuavam lá, seja qual fosse a hora em que ela passasse aqueles olhos estavam atentos. Aquilo a estava angustiando, resolveu então, indagar na vizinhança sobre os locatários daquele imóvel.
Após algumas palavras trocadas com Otílio, o morador da casa verde engraçada, que tinha uma caixa de correio em forma de côco verde (depois de quase dois anos morando naquela rua, essa era a primeira vez que ela o interpelava), descobriu que o locatário do sobrado gelo na verdade era o proprietário do imóvel. Parecia pouco comunicativo e nas poucas vezes que Otílio o viu saindo de casa, ele vestia ternos impecáveis, carregava uma maleta e usava óculos escuros, o que para ele caracterizava um advogado, executivo ou algo assim.
Ela tentou se tranqüilizar, achou que aquilo poderia ser um bom sinal. Tudo indicava que o dono daquele olhar era uma pessoa respeitável. Começou a fitar aquela janela, a encarar aquele olhar, com bons olhos. Poderia ser apenas um curioso, sei lá. Ou, talvez, ela, de alguma forma, chamou sua atenção. Decidiu se produzir melhor. Na quarta semana já sorria para aqueles olhos. Um sorriso de canto de boca, mas um sorriso. No trabalho, as pessoas lhe perguntavam o que teria acontecido, ela estava mais corada, mais disposta, mais bonita. Ela se sentia feliz. Claro que jamais assumiria para quem quer que fosse que o motivo de tal transformação se devia a furtivos olhares que um vizinho estranho lhe estava dirigindo. Mas sabia bem o quanto eles tinham sido essenciais para seu recente bom humor.
Qual não foi a sua surpresa quando, após três longos meses de expectativa e flerte, ela não o encontrou. Aqueles olhos não estavam lá. O que teria acontecido? Preocupou-se, quase se esvaiu em devaneios pessimistas, mas enfim ponderou, ele deveria ter tido um compromisso que o obrigou a antecipar-se. Seguiu adiante, afinal não poderia se atrasar. Passou o dia inteiro com aqueles olhos em seu pensamento. "O que há naquele olhar? Por que aquele olhar para mim? Por que sua falta me deixou assim?" Tentou afastar qualquer pensamento de sua cabeça alimentando-se com a perspectiva de que à noite, quando retornasse à sua casa, ao passar em frente àquele sobrado, os olhos estariam novamente ali, por trás das persianas a contemplá-la.
Depois do seu expediente diário, com ansiedade, desceu a rua de sua casa. O sobrado estava logo ali à frente. Mas, nada. Nenhuma olhadela. Nenhuma persiana entreaberta. Perplexa, ela seguiu em frente. Será que ela imaginava que isso nunca aconteceria? Sim, ela imaginava. Por isso não estava preparada. Chegou em casa, angustiada. "Por que ele não estava lá? Por que?" Passou a noite em claro, sem conseguir entender como a falta de um olhar a tinha deixado tão perturbada.
No dia seguinte ela arrumou-se novamente. E assim sucessivamente, dia após dia. Mas aquele olhar, nunca mais retornou. Ficou sabendo por Otílio, que agora já considerava um amigo e do qual a casa passara a freqüentar, que o sobrado estava á venda. Sentiu uma pontada de tristeza. Decidiu ir até lá. Bateu-lhe uma curiosidade a respeito daquele velho sobrado, daquele recente habitante. Talvez ele houvesse esquecido algo e ela poderia saber de quem eram aqueles olhos.
Num rompante, ela saltou um muro. Sentiu a adrenalina a mil, pois tinha a consciência de que estava invadindo uma propriedade alheia. Tentou a porta dos fundos e... ela estava aberta. Acho que nunca teria sido mais fácil invadir uma residência. Bisbilhotou a casa toda, parecia estar tudo no lugar. Alguns móveis, pouca coisa. Deixou por último aquele cômodo onde ficava a janela com as persianas. Ao cruzar a porta viu uma escrivaninha e em cima dela um envelope. Ansiosa pegou o envelope, no verso deste estava escrito "Para você". Começou a abrir, mas parou. Pensou bem. Aquela carta por acaso era sua? Como saberia? Estava enderaçada a VOCÊ. Mas VOCÊ poderia ser qualquer pessoa, então... poderia perfeitamente ser ela. E só haveria uma maneira de descobrir, abrindo aquele envelope e lendo o seu conteúdo. Numa caligrafia forte e legível, a carta dizia o seguinte:

Espero que esta carta se encontre agora, nas mãos da pessoa certa, VOCÊ.
VOCÊ...
... que todos os dias sai de casa logo cedo e só retorna a noitinha,
... que parecia tão triste e distraída,
... que mal cumprimentava as pessoas,
... que andava sempre muito discreta,
... que mirava todos os dias a minha janela, com um olhar carente,
... que me fazia rápida companhia no café da manhã e na ceia da noite,
... que de uma hora pra outra começou a produzir-se mais,
... que agora já parece disposta a estabelecer contatos com os vizinhos,
... que enfim descobriu o quão bela pode ser.
Para Você que escrevo.
Talvez, essa sua transformação se deva aos meus olhos curiosos que por ironia do destino cruzaram os teus numa manhã dessas. Melhor, talvez você pense que tudo se deve a isso, mas não. Não foram meus olhos que te fizeram mudar, e sim o que você viu neles.
Você viu que pode ser desejada, que pode ser bonita, que pode ser diferente. Viu o quanto a vida poderia ser melhor, bastava mudar um pouquinho. Talvez movida pela curiosidade a meu respeito, você começou a conversar com a vizinhança. Começou a alargar seus limites, a ampliar seu mundo. No começo você teve medo dos meus olhos, teve medo do que via neles, mas logo quis me conhecer. Mas você acabou fazendo melhor, passou a se conhecer. Sem querer você percebeu que tinha uma vida solitária, monótona. Veja só! Até ousou invadir minha casa!
Talvez, agora, esteja passando um filme na sua cabeça. Talvez, agora, você tenha perdido o interesse em me conhecer, não faz mal. O importante mesmo foi você ter se conhecido.
Às vezes a gente só precisa de uma oportunidade na vida. Uma oportunidade de se ver e fazer melhor. Você se deu essa chance! Agora vá! Você já viu nessa janela o que precisava ver. Vá ser feliz!

Tranquilamente ela dobrou a carta, guardou-a no envelope e a deixou sobre a mesa. Aquela carta não era importante. Aquela janela já não era importante. Aqueles olhos já foram importantes. Importante mesmo, agora, era seguir em frente. Era se amar. Era ser feliz! E ela, então, se foi! Pra onde? Ninguém nunca soube, mas há quem diga que ela tinha um sorriso no rosto, uma mochila nas costas e um ar de quem estava indo fazer o que sempre quis... voar!

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